A academia e a Fraternidade: um novo paradigma na formação dos operadores do Direito
Josiane Rose Petry Veronese*
Sumário: 1. Primeiras palavras; 2. De que lugar falamos?; 3. Do Direito dogmático ao Direito crítico; 4. Por um novo paradigma: o Direito à Fraternidade; 5. Considerações finais; 6. Referências bibliográficas.
Palavras-chave: direito; paradigma, fraternidade.
1. Primeiras palavras
Este tema trata-se de uma oportunidade única de refletirmos o nosso papel na formação dos operadores do direito no atual contexto societário. Aliás não me é suficiente esta categoria em seu sentido estrito, pois mais dos que técnicos habilitados a trabalhar com a dogmática jurídica, queremos ser nesta função, provocadores de justiça. E aí nesse contexto se apresenta o “novo”, o empenho de construirmos uma Justiça que seja realmente uma Justiça Social, esta entendida como a concretização de condições dignas de vida para toda a sociedade e garantia de participação nos destinos da mesma. O que importa afirmar que a utopia, enquanto sonho possível de ser realizado, não depende única e exclusivamente de leis, aspecto este por demais importante nos dias atuais, em que se verifica o fenômeno da inflação legislativa, na tentativa insólita de querer que se resolvam problemas sociais através da criação tão-somente normativa.
Seria de fato uma ilusão pensar que a estrutura econômico-político-social de uma certa sociedade se alteraria automaticamente e, ter-se-ia, conseqüentemente, uma democracia tangenciada pela participação de todos, indivíduos e grupos, com a simples edição de novas leis, sem um compromisso real com a sua eficácia.
Percebe-se que nesse ponto a questão torna-se ainda mais complexa, pois mesmo que se tenha uma produção normativa de teor progressista e em constante harmonia com as transformações que se processam na sociedade, os juristas, em razão de terem sua formação construída sobre as bases de mitos e dogmas, tornam-se submissos a preceitos e fórmulas, em vez de contribuírem, na tarefa de viverem completamente enraizados na sociedade em que estão inseridos e tendo o compromisso de "levar a ela o inconformismo da necessária mudança"[1], mas ao contrário disso e, infelizmente, criam obstáculos à concretização de preceitos de cunho social.
Depreende-se portanto que, apesar da existência de todo um instrumental, cuja efetividade dependeria tão-somente de seu uso, restringe-se a poucos casos isolados, e o que é ainda pior, fica-se à mercê de determinados padrões que antevêem na realização das normas jurídicas que tenham a função de contribuírem na transformação da sociedade, um certo perigo de desequilíbrio no sistema da tripartição dos poderes. Temem que o Poder Judiciário, à medida que julgue procedentes a grande maioria dos casos de conflitos que envolvem o indivíduo, ou coletividades inteiras que interpõem ações civis públicas em razão de inadimplência do Estado no cumprimento de suas políticas sociais, estaria adentrando em um campo que não lhe pertence, pois são questões que tradicionalmente se entendia estarem a cargo dos outros dois poderes - Executivo e Legislativo.
2. De que lugar falamos?
Hoje, as relações sociais, as mutações técnico-científicas têm acontecido com uma velocidade tal que nos encontramos circunspectos.
Entre o mundo da norma - do dever ser - e o mundo dos fatos - do ser - há um abismo tamanho e ficamos a nos questionar se é valido continuar operando com a dinâmica societária como até então vínhamos fazendo. Se é possível a construção de efetivas pontes entre as mais diversas áreas do conhecimento? Que pontes seriam estas? E ainda, como construí-las?
Somos levados, portanto, a lançar um primeiro olhar pesaroso sobre a nossa história, sobretudo quando constatamos que grandes bandeiras, como a defesa dos direitos humanos, pelas quais se lutou e se continua lutando ao longo da história da humanidade, parecem, no entanto, tão distantes.
O Direito, segundo uma perspectiva monista, percorreu toda uma trajetória histórica com uma postura nitidamente diretiva, onipotente, muitas vezes distante do que acontecia no âmago da sociedade. A ele foi conferido o poder de criar e estabelecer normas, cobrar condutas e penalizar, numa relação em que se configurava claramente a manutenção de certo status quo. Era o senhor do instituído, diante do qual tudo aquilo que se contrapunha era tido como o anormal, o perigoso. Tal circunstância tem como conseqüência uma crise do Direito, pois o positivismo dogmático, segundo a visão de Antônio Carlos Wolkmer, ficou amarrado a algumas questões como por exemplo, redução do Direito à produção normativa estatal e, portanto, resultando no legalismo; no distanciamento das práticas sociais; na negação ou desconsideração sobre a importância do surgimento dos novos conflitos de natureza coletiva, e não a valorização da necessária leitura interdisciplinar em todas as mudanças que estamos vivenciando[2]. Todos esses aspectos acabam por resultar no afastamento do Direito da sociedade.
O que representa este entendimento interdisciplinar para o Direito?
A interdisciplinaridade, tão difundida e ressaltada atualmente nos ambientes educacionais ou mesmo empresariais, tem funções específicas, tais como: impede a delimitação do tema sob o prisma de uma única área do conhecimento, ensejando uma maior flexibilização nas análises e, portanto, uma visão mais abrangente possível de um tema proposto; elucida que as pesquisas em Direito estão conectadas com a Sociologia, a Filosofia, a Ciência Política, a Pedagogia, a Psicologia, a História, etc., as quais não devem ser percebidas como meras colaboradoras para compreensão do fenômeno jurídico, antes, este somente pode ser realmente compreendido, encarado em sua complexidade, à medida que devidamente apreendido no universo do saber humano.
O Direito em seu dever ser tem como fim o estabelecimento de um modelo social pautado na justiça e o que assistimos é a um quadro de profunda, de uma violentadora injustiça social. Pede-se pela paz e o que presenciamos no nosso dia-a-dia senão os mais variados conflitos de ordem interna: dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-documentos, dos com-fome, e na ordem externa: a falta de solidariedade entre os povos, os conflitos armados, o terrorismo.
Diante da nossa atual realidade econômica, política e social, o Direito vive uma situação inevitável de grande transformação, por um lado vê cair construções seculares; questiona-se as relações de poder; os espaços passam a ser divididos, através da importância que começa a ser referendada a outras ciências, a outras áreas do conhecimento humano. De forma que passamos a nos encontrar frente a um discurso inter e multidisciplinar, saberes diferentes, experiências distintas são significativas para o fim do seu já inóspito absolutismo.
A partir daí, lançamos um segundo olhar, a idealização de algo novo, uma vez que esta nova perspectiva concebe a sociedade e o Direito, como realidades plúrimes, um direito que se insurge a comandos de caráter tão somente econômico, que se fundamenta em princípios, que leva em conta a história socio-cultural de um povo, constituindo, assim, uma nova visão, uma nova leitura sobre o nosso hoje, distante das matrizes sufocadoras que sempre o caracterizaram.
A dogmática jurídica é no mais das vezes compreendida como o conjunto de técnicas de que se serve o operador do Direito, no entanto, e aí está, entendemos, talvez um dos pontos centrais dessa análise, pois a dogmática jurídica que se diz possuidora de todo um referencial autônomo sobre a constituição do saber jurídico, tem assentado este suposto saber sobre uma produção didática extremamente pobre, de simples manuais, que estão, em sua grande maioria, desvinculada da concepção de um direito crítico, pelo contrário, o que se faz é uma produção massificada, quantitativa e não qualitativa, portanto, uma construção muito pouco científica.
Isso implicaria afirmar que o Direito constitui-se num conjunto de verdades, diante do qual o profissional ou estudante, na posição de simples súdito, prestaria acriticamente obediência.
Depreende-se que no processo de elaboração legislativa e doutrinária ausente está um elemento importantíssimo: submeter tal construção à crítica, no sentido de se questionar qual a ideologia fomentadora da norma e sua conseqüente doutrina. É esta submissão da norma aos anseios sociais que a torna eficaz e legítima. Se as leis nascem sem qualquer relação com a sociedade são como um corpo sem vida, frio, pois não a tem a alma de uma norma fundamentada na efetiva dinâmica social, é, pois tal preocupação, é este conteúdo crítico que tentamos levar aos nossos acadêmicos.
Pois, a fecundidade das nossas doutrinas, interpretações e criações jurídicas está longe de ser desprezível e transfere a questão para outros pontos, como a necessidade de uma maior preocupação com as mais modernas construções teóricas; a urgência de implantação ou uma maior valorização nos cursos de Direito, de disciplinas como a Filosofia Jurídica, Sociologia Jurídica, Deontologia Jurídica, Epistemologia Jurídica, Psicologia Jurídica, entre outras; estimulação e orientação da crítica axiológica ao sistema jurídico; um maior rigor na análise estrutural dos institutos, situando-os historicamente e definindo quais são as suas implicações na atualidade; uma maior preocupação com a formação do raciocínio jurídico, enfim de uma série de medidas que contribuam na formação de um profissional crítico, consciente de seu importante papel enquanto ator/construtor social.
O Direito que pretende caminhar na direção da história deve continuamente ser questionado, se está a postular por uma perspectiva libertadora, de pensar sobre e com o ser humano, ou se está fixo à reprodução e consolidação ad eternum do que até então foi construído.
A dogmática jurídica tem sido apresentada em boa parte dos cursos jurídicos, até o momento, como aquela que não tem a pretensão de que o profissional ou acadêmico de Direito adentre pelos caminhos da criatividade e do senso crítico, muito pelo contrário, trata-se de uma teoria do conhecimento, centrada na solução de conflitos, com o mínimo possível de perturbação social. Um Direito que serve como freio às manifestações político-ideológicas progressistas, que lutam por uma sociedade mais igualitária, o qual é na realidade um Direito ilegítimo, pois usado frivolamente para a dominação e toda ordem de injustiça, e mais, pode ser sinônimo de legalismo ou de falso direito, porque dissonante da realidade histórica e, conseqüentemente, inverídica toda a sua construção dogmática.
Entendemos, ainda, que o problema da dogmática brasileira não está centrado na falta de criatividade dos operadores do Direito: advogados, magistrados, promotores de justiça, professores da área jurídica, estudantes...
Considerando o método como o instrumento necessário para nos conduzir corretamente acerca de determinado assunto com vistas a um resultado, ao analisarmos o método do ensino jurídico, é necessário que levemos em consideração que tipo de operador do Direito pretende-se formar, como solidificar no acadêmico a importância de uma postura crítica e ao mesmo tempo preocupada em edificar uma sociedade pautada em valores éticos, aliás, não andamos meio esquecidos que deveria estar na ética a base do Direito?
Quando se adentra na questão de se saber quais as responsabilidades dos que lidam com o sistema de justiça, numa sociedade em mutação, de imediato surge o tema da formação destes operadores. Aí, situa-se uma questão fundamental: quando se pretende mudança em tal sistema, quando se luta pelas mudanças no Poder Judiciário, como proceder essa transformação se seus agentes continuam sendo formados na tradição normativo-formalista da dogmática jurídica, que se ocupa tão-somente com aspectos lógico-formais da norma, numa alienante tarefa de submeter os fatos à prescrição legal, totalmente distante da sociedade, fazendo-se passar por agentes neutros, despolitizados, quando sabemos que esta posição é totalmente falsa? Esta despolitização não existe, ao invés trata-se de um sucedâneo de valores que foram determinados pelo sistema, que cultiva a segurança do Direito e de uma suposta ordem e, por conseguinte, do estrato social que se serve do Poder Judiciário enquanto célula de coerção e repressão social.
3. Do Direito dogmático ao Direito crítico
Percebemos, assim, o quanto o Direito, em sua visão monista, por colocar-se como algo sentenciador, positivado em normas, pretende impor-se como dogma[3], e portanto, como algo irrefutável, como se os “donos do poder jurídico”, os legisladores, por época da elaboração das leis, estivessem a tal ponto divinizados, que toda produção legislativa constituísse uma obra perfeita e sem erros.
Quando se pensa no Direito, acreditamos que a maior falha consiste em apresentar a legislação como seu único objeto - o dogma da norma. Este entendimento pode levar-nos a compreender a lei como sinônima do Direito, quando na realidade a lei estatal se constitui numa de suas formas de manifestação. Se ficarmos presos à concepção de lei igual ao Direito, restringiríamos este último a algo que é imposto pelo poder estatal, sendo, portanto, sujeito a interpretação e aplicação, mas não à crítica.
Decorre daí um fato interessantíssimo, que domina não apenas o Direito brasileiro, mas o de praticamente todo o mundo, no sentido de que o Direito constitui uma ciência singularíssima, pois sua elaboração teórica faz-se com base na técnica - norma, ao contrário do que ocorre nas demais ciências, nas quais a técnica estrutura-se a partir da teoria como sua aplicação.
Na abordagem deste como repensar a dogmática, uma forma que se apresenta como construtora de uma nova visão é a de nos dirigirmos para o caminho do questionamento desse suposto dogma, no sentido de não nos submetermos cegamente ao que nos é instituído, o “pronto”, o “certo”, o “acabado”, somente assim poderemos ter uma noção mais ampla acerca do Direito. Isso significa quebrar, romper com o dogmatismo vigente, fazendo com que o Direito se insira dialeticamente no contexto social, do qual faz parte, e a partir daí seja visto como uma disciplina científica que constrói passo a passo, de modo crítico, o seu objeto, inserido numa realidade histórica, ou seja, o Direito que se presta ao homem/mulher/adulto/idoso/jovem/criança num contexto histórico real e mutável.
No entanto, tal problematização implica em imprimirmos novas bases sobre as quais refletiremos a função e, até mesmo, o seu conceito.[4]
De sorte que o legislador não poderá elaborar um conjunto de leis, alheio às proposições da ciência jurídica e das demais ciências sociais, sob pena de estarem tais normas alienadas da realidade social e por conseqüência, serem, no mínimo, ineficazes.
Aqui, também, é oportuno tecermos alguns comentários acerca da Educação, uma vez que a educação moderna, com um número muito grande de informações provenientes de todos os setores, e mais recentemente, com o acesso à internet (rede mundial de computadores) tem acentuado este fenômeno do bombardeio de informações. Por isso, mais do que nunca, faz-se necessário o desenvolvimento constante de estratégias que proporcionem condições ao educando de saber selecionar, analisar, contextualizar, criticar e classificar as informações que lhe são fornecidas, segundo uma perspectiva lógica, racional, consciente.
Nesse sentido, como solidificar no acadêmico a importância de uma postura crítica e ao mesmo tempo compromissada em edificar uma sociedade pautada na ética que é a base do Direito?
O Direito, no seu dever ser, deveria configurar como um articulador da justiça social, porém a história nos demonstra que isso não corresponde à verdade, pois no mais das vezes, o direito é usado como o justificador de um sistema de dominação ou, quando muito, um “harmonizador” de litígios, porém, assegurando-se de antemão, o privilégio de quem pertence aos estratos sociais privilegiados.
Quanto às finalidades do ensino jurídico torna-se importante questionar: que profissionais temos e teremos? Reprodutores de uma idéia que reduz a justiça a uma dimensão exclusivamente técnica, ou indivíduos sedentos de transformação, que compreendem o direito como instrumento que viabilize a construção de uma sociedade verdadeiramente justa[5], fraterna.
A carência didática e metodológica nas faculdades de Direito, leva à formação de profissionais fechados, obstinados pela leitura e cumprimento cego da lei, sem condições de gerar, propor conhecimentos novos sobre a realidade social.
Nesse sentido aduz criticamente Roberto Lyra Filho:
O Direito que se ensina errado. [...] Talvez seja por isso que se desencanta o jovem estudante de Direito. Talvez seja por isso que, dizem, o curso jurídico atrai os alunos acomodados, os carneirinhos dóceis, os bonecos que falam com a voz do ventríloquo oficial, os secretários e os office-boys engalanados de um só legislador, que representa a ordem dos interesses estabelecidos. O uso de cachimbo dogmático entorta a boca, ensina a recitar, apenas, artigos, parágrafos e alíneas de direito oficial. Mas então, é também uma injustiça cobrar ao estudante a mentalidade assim formada, como se fosse um destino criado por debilidade intrínseca do seu organismo intelectual. Sendo as refeições do curso tão carentes de vitaminas, que há de estranhar na resultante anemia generalizadora?[6]
De fato, o ensino em nossos cursos jurídicos, o que infelizmente ocorre também em outros cursos, encontra-se defasado. Isso porque as aulas, no mais das vezes, consolidam posturas autoritárias e são professadas, ditadas, não favorecendo o espaço para discussão ou debate.
No dizer de Paulo Freire,
[...] trabalhamos sobre o educando não trabalhamos com ele. Impomo-lhe uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos meios para o pensar autêntico, porque, recebendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora, porque a incorporação é o resultado de busca de algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de procura. Exige reinvenção.[7]
4. Por um novo paradigma: o Direito à Fraternidade
Evidencia-se, pelo que foi até aqui exposto, o quanto o Direito tem se apresentado como um instrumento voltado para a manutenção de determinadas estruturas. Partindo desta análise, se constata que o Direito precisa ser repensado, discutido, reconstruído e isto ganha um enfoque especial quando se pensa nos Cursos Jurídicos. Como ensinar de modo novo o Direito? Não se trata, ao nosso ver, de uma mera questão didática, metodológica tão-somente, antes diz respeito a forma de aprofundar as matrizes, as origens desse Direito.
A metodologia do ensino do Direito deveria, antes de mais nada, estar centrada no ser humano e ser capaz de instrumentalizar o acadêmico de Direito, proporcionando-lhe uma consciência crítica, engajada com a realidade - realidade esta não estática, mas dinâmica. E assim deveria ser o Direito, resultado de um processo criativo contínuo.
No ensino jurídico não pode ser deixada de lado a figura do professor. A este é dada a tarefa de denunciar as situações ditas normais e verdadeiras, quebrar os paradigmas, levar à reflexão de que o direito é mobilidade e mostrar que não é a partir de uma “leitura” de certo texto da lei, que chegaremos ao todo do Direito, pois expressando-se a lei em linguagem natural, é conseqüentemente vago e ambíguo. Nesse sentido, convém recordarmos que o Direito (enquanto mero conjunto de leis) não pode ser compreendido como sinônimo de Justiça, mas um fato normativo - gerador de normas - e essencialmente contraditório.
Daí decorre que a neutralidade dos juristas, é um mito, como esclarece Nilo Barros de Brum,
[...]somente quem não queira ver ou quem não tenha nenhuma vivência forense, há de acreditar que, em termos de processo judicial, exista uma verdade real ou material em oposição à verdade formal. Essa oposição é uma ficção retórica que tem a utilidade de proporcionar argumentos de grande força qualificadora ou desqualificadora nos contextos decisórios, pois, na realidade, a verdade sobre o fato sub judice será sempre aquela que o juiz ou tribunal reconstruir e estabelecer em uma decisão passada em julgado.[8]
Como podemos perceber, desvenda-se o mito da verdade. O estudante deve ser alertado que não vai achar no Direito a resposta certa. É preciso, portanto, desmistificar esta ciência, pois sendo como de fato é, algo produzido pelo homem, está propenso a erros.
San Tiago Dantas, já em 1955, revelava preocupação com esse problema:
O ponto de onde, a meu ver, devemos partir, neste exame do ensino que hoje praticamos, é a definição do próprio objetivo da educação jurídica. Quem percorre os programas de ensino das nossas escolas, e sobretudo quem ouve as aulas que nelas se proferem, sob a forma elegante e indiferente da velha aula-douta coimbrã, vê que o objetivo atual do ensino jurídico é proporcionar aos estudantes o conhecimento descritivo e sistemático das instituições e normas jurídicas. Poderíamos dizer que o curso jurídico é, sem exagero, um curso dos institutos jurídicos, apresentados sob a forma expositiva de tratado teórico-prático.[9]
A reconstrução metodológica do Direito, como trabalho científico, é um processo de construção dialética: da teoria, do problema, do objeto, do método, da técnica, do ensino, da formação, etc.
Importante, nesse processo de formação dialética, é que construamos um Direito a partir das nossas próprias realidades, a solução deve ser gerada de acordo com a nossa trajetória histórica. Uma efetiva transformação que implicaria uma atitude compromissada com a realidade, como afirma Paulo Freire:
Compromisso com o mundo, que deve ser humanizado para a humanização dos homens, responsabilizado com estes, com a história. Este compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade histórica, não pode realizar-se através do palavratório, nem de nenhuma outra forma de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos. O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade de cujas águas os homens verdadeiramente comprometidos ficam molhados, ensopados. Somente assim o compromisso é verdadeiro. Ao experenciá-lo, num ato que necessariamente é corajoso, decidido e consciente, os homens já não se dizem neutros. A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta de um compromisso contra os homens, contra sua humanização, por parte dos que se dizem neutros. Estão comprometidos consigo mesmos, com seus interesses ou com os interesses dos grupos aos quais pertencem. E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem a neutralidade impossível.[10]
Entendemos que a reconstrução do Direito consiste numa tarefa extenuante, todavia precursora de um novo tempo: transformar o profissional ou acadêmico de Direito num jurista antropofágico, que a toda hora devora as certezas que até então tinha como premissas irrefutáveis, colocando-se numa posição de humildade científica, a repensar, a mudar, a criar propostas.
Ao nosso ver parece irracional que continuemos a consolidar em ditames coercitivos a proteção dos privilégios de determinada categoria social, num permanente cuidado-vigilância-cumprimento da ordem legal, de modo a garantir a permanência das desigualdades sociais existentes.
Não é este o verdadeiro sentido do Direito.
É urgente que se desmistifique a dogmática, é urgente que a educação seja um campo no qual se semeie a criticidade, cultive-se o raciocínio questionador, promova-se a consciência, enfim, colham-se projetos entusiastas de um mundo renovado.
Neste contexto em que analisamos o Direito e a Fraternidade torna-se imperioso falarmos em Direitos Humanos, o que implica em reconhecermos o ser humano como sujeito de direitos. Esta categoria histórica cuja origem pode ser apreendida na filosofia que orientou a Revolução Francesa (1789), concretizada na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1948), importa numa característica fundamental: os sujeitos são apreendidos em função da condição humana peculiar a todos os homens e mulheres indistintamente.
Muito embora as análises simplistas e superficiais do tema conduzam a uma identificação do sujeito com o autor do direito, vê-se, no entanto, para além da retórica que sustenta este núcleo do direito moderno, a existência de uma flagrante diferenciação entre aqueles (os autores) cuja vontade pode vir a ter uma significação jurídica em função da competência atribuída no próprio ordenamento jurídico estatal e aqueles (os sujeitos), cujas vontades devem adequar-se aos preceitos determinados pelos primeiros. Duas categorias, portanto, de sujeitos formalmente iguais perante a lei. Essa distinção se encontra expressa tanto no âmbito do direito público, quanto em nível de direito privado, em graduações diversas da capacidade do sujeito em relação ao livre exercício de seus direitos.
Dessa forma, o princípio fundado na igualdade dos homens perante a lei perdura nas práticas jurídicas contemporâneas como um topos a ser alcançado. A busca de um contorno preciso para o sujeito escrito no universo jurídico conduz a um redimensionamento ético do Direito, isto é, a um resgate do bem central em torno do qual as práticas jurídicas adquirem sentido, qual seja, a valorização do ser humano em toda a sua amplitude.
De igual o modo, o princípio da liberdade, em que pese as muitas lutas em busca da concretização desse direito, o seu ideário cresceu nos mais variados níveis normativos. Exemplificativamente, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 15, esclarece que o direito à liberdade, assim como ao respeito e à dignidade, constituem direitos civis, humanos e sociais. E no art. 16, ao tratar especificamente do direito liberdade situa os mais variados aspectos: da ir e vir, o da opinião e expressão, da crença e culto religioso, entre outros.
No tocante ao terceiro princípio, o do da fraternidade, este parece não ter ainda conseguido ocupar esta mesma expressividade nos documentos jurídicos. A tal ponto que se torna imperioso questionar: é possível normatizar a fraternidade ou esta deverá ser a base de uma nova postura, sobretudo a relacional?
Em seu sentido etimológico a categoria fraternidade, do latim fraternitate, nos confere a idéia da irmandade, do amor ao próximo, da harmonia, paz, concórdia, portanto, quais serão os efeitos da efetivação deste princípio.
Tradicionalmente a solidariedade é reconhecida como categoria jurídica na grande maioria dos paises, porém a fraternidade representa um avanço doutrinário, pois vai alem da concepção de sermos responsáveis uns pelos outros, mas sentirmos, efetivamente, a humanidade num todo como uma grande e única família que torna a todos irmãos.
Ao analisarmos o sistema normativo brasileiro constatamos que a primeira norma infracontitucional a ocupar-se com esta temática foi, exatamente, a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a qual estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, especificamente em seu art. 2º:
A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios da liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (grifamos).
Parece-nos um efetivo marco que esteja exatamente nesta a lei – a da educação – o norteamento para algo efetivamente capaz de transformar a sociedade: o comprometimento com a cultura do compromisso ético, universal, com o outro, portanto, com a cultura da fraternidade, da solidariedade.
Quando visualizamos uma determinada sociedade e, aqui, em especial, a grande sociedade brasileira, uma família composta pelas mais variadas culturas, etnias, é nesta sociedade que deve se sobrelevar não apenas o desejo de justiça, mas a inevitável necessidade que tal Justiça seja real, efetiva.
Falar em justiça é algo que nos sensibiliza, eleva-nos ao grau dos poetas, mas não seria apenas emotividade, antes tem a energia de um vulcão em erupção.
É ela que nos estimula às grandes práticas, a compromissos. A justiça verdadeira é aquela cuja base está na garantia dos direitos individuais e sociais. Uma sociedade que subjuga estes direitos, destruindo e negando aos seres humanos os direitos mais fundamentais, não merece o título de humana. A justiça é um fim procurado por cada um para atender seus princípios morais, culturais e espirituais, para que ninguém seja reduzido a mero instrumento de domínio de outros homens ou de estruturas totalitárias; já numa dimensão coletiva, a justiça deve ensejar em um compromisso maior: o da eliminação de todas as mazelas que dificultam ou obstaculizam a fraternidade, a liberdade, a igualdade de todos.
E nós como nos situamos frente a um tema que dilata os limites da consciência e da alma? Os operadores do direito, pela natureza e característica de sua profissão devem permanentemente discutir sobre a justiça de nossas instituições, devem viver os problemas de seu tempo, impulsionar a criação e aplicação de leis garantidoras de direitos, com o fim de não apenas promover e salvaguardar tão-somente os interesses individuais, mas de não se omitir, no sentido de criar condições sociais, econômicas e culturais e dessa forma concorrer para a formação de um Estado democrático, sobre o qual se concretizem as legítimas aspirações de todo homem, toda mulher, garantindo-se a sua dignidade, enquanto ser individual e social.
5. Considerações finais
Acreditamos que a atitude de sonhar por uma nova sociedade e de fazer dessa utopia uma realidade, exige de todos nós algumas análises e compromissos fundamentais:
1º) A defesa de uma sociedade harmoniosa, pacífica, justa a qual não poderá se concretizar se forem mantidas as atuais estruturas de violência. A violência se constitui no grande paradigma do sacrifício e, portanto, além de todas as outras leituras que dela podemos realizar é, também, no plano ético imoral Por que? Porque tais estruturas têm a característica da dor, da morte, do penalizar, enfim do fazer sofrer.
Tal distanciamento ético é, pois, real, segundo Sônia Felipe
[...]o agir ético não pode servir de sinônimo para o verbo sacrificar o outro em benefício próprio. Muitas das formas tradicionais de ação no campo científico não são éticas, pois o princípio que as regula e norteia é do sacrifício - de outrem, nunca o de si mesmo. Alguém é eliminado, algum interesse é ignorado, para que outro prevaleça. O que resulta dessa operação pode servir para realizar algum interesse econômico, político, da indústria, do comércio, da academia, mas, se não respeita a dignidade moral dos envolvidos, se os coloca na condição de meros meios para que fins estranhos à sua dignidade sejam alcançados, deixa de pretender legitimar-se do ponto de vista ético.[11]
2º) A partir dessa linha de raciocínio faz-se mister a desconstrução de todos os preconceitos, os quais têm a ignominiosa pretensão de atribuir a condição de mais humanos a alguns do que a outros. Como se fosse possível quantificar e graduar a nossa humanidade.
3º) Decorre daí a necessidade, ainda que se constitua numa tarefa difícil e que exige uma ação constante, gradual e progressiva, a introdução de valores, valores sempre novos que propugnam pela valorização do ser humano.
Não podemos permitir que as violações barbarizem o ser, não podemos permitir que as inovações técnico-científicas, que fenômenos político-econômicos de grande força, como o é a globalização, que a cultura do hedonismo cuja sustentação hoje é tão bem definida nos shopping centers, os templos contemporâneos do consumo e paradoxalmente da exclusão social, desautorizem, anulem a nossa humanidade.
A grande meta está em acreditar no ser humano, pois, afinal, que sociedade queremos neste século XXI? Para tanto é necessário consumirmos energias em propostas, em projetos com força transformante da ordem social, que, infelizmente, até o momento, privilegia alguns em detrimento de tantos. Uma nova ordem social - pacífica, solidária, justa - eis o grande desafio que nos é imposto no nosso hoje, para não nos ausentarmos da condição de cidadãos de nosso tempo.
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WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1994.
*Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. Doutora em Direito. Vice-diretora do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC e Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e sociais da Criança e do Adolescente. Autora de vários livros entre os quais destacam-se: Interesses difusos e direitos da criança e do adolescente. Minas Gerais: Del Rey, 1997; Temas de direito da criança e do adolescente. São Paulo: LTr, 1997; Entre violentados e violentadores. São Paulo: Cidade Nova, 1998; Os direitos da criança e do adolescente.São Paulo: LTr, 1999; A tutela jurisdicional dos direitos da criança e do adolescente (em co-autoria com Moacyr Motta da Silva). São Paulo: LTr, 1998; Adoção internacional e Mercosul (em co-autoria com João Felipe Corrêa Petry). Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004; Poder familiar e tutela (em co-autoria com Lúcia Ferreira de Bem Gouvêa e Marcelo Francisco da Silva). Florianópolis: OAB/SC editora, 2005; Violência e exploração sexual infanto-juvenil: crimes contra a humanidade (org.). Florianópolis: OAB/SC editora, 2005; Violência doméstica: quando a vítima é criança ou adolescente (em co-autoria com Marli Marlene M. da Costa). Florianópolis: OAB/SC editora, 2005; Limites na educação: sob a perspectiva da Doutrina da Proteção Integral, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Florianópolis: OAB/SC editora, 2006 (em co-autoria com Cleverton Elias Vieira). Trabalho infantil: a negação do ser criança e adolescente no Brasil. (em co-autoria com André Viana Custódio). Florianópolis: OAB editora, 2007. Endereço on-line: jpetryve@uol.com.br
[1] FAORO, Raymundo. "O jurista Marginal" in LYRA, Doderó Araújo. Desordem e processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Fabris, 1986. p. 37.
[2] WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1994, p. 66.
[3] “DOGMA, s.m. Ponto fundamental e indiscutível de uma doutrina religiosa, e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema. “DOGMÁTICO, adj. Respeitante a, ou próprio de dogma. Fig. Autoritário, sentencioso.”[3] (grifamos) . FERREIRA, A.B.H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa, p. 701.
[4] Para FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 5: “[...]esta reflexão não pode ignorar que a Dogmática está ligada a uma dupla abstração; a própria sociedade, na medida em que o sistema jurídico se diferencia como tal, constitui ao lado das normas, regras para a sua manipulação. Ora, este é o material da Dogmática, tratando-se, portanto, da elaboração de um material abstrato num grau de abstração ainda maior. Se isto, de um lado, lhe dá certa mobilidade, certa independência e certa liberdade, como condição de seu próprio trabalho, de outro, paga-se por isso um preço: a abstração e o risco de distanciamento progressivo da própria realidade. A dogmática, transformando-se assim em abstração de abstração, vai preocupar-se, por exemplo, com a função das classificações, com a natureza dos conceitos, etc.”
[5] Neste sentido, COMPARATO, Fábio Konder. In: Reflexões sobre o Método do Ensino Jurídico. Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo. vol. 74, fls. 3 (mimeo), observa “um aparente antagonismo entre a formação generalizadora e desvinculada de compromissos profissionais, de um lado, e o ensino profissionalizante de outro. O primeiro tipo de formação diz-se, pertenceu ao passado, era próprio de uma sociedade pré-industrial e elitista. Estava na origem do bacharelismo. O ensino profissionalizante, ao contrário, seria o único adaptado às necessidades de um país que deseja desenvolver-se, tanto econômica quanto social e politicamente, no sentido de uma maior igualdade de oportunidades.”
[6] LYRA FILHO, Roberto. O Direito que ensina errado. Brasília: UnB/ Centro Acadêmico de Direito, 1980, p. 28.
[7] FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 96-97.
[8] BRUM, Nilo Barros de . Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 8. Acrescenta o autor: “Trata-se de uma presunção de verdade inferida das provas que foram consideradas mais convincentes, presunção que admite prova em contrário (juris tantum) enquanto houver oportunidade para atacá-la por meio de recurso, e que não admite prova em contrário (juri et de jure) depois de tornar-se inatacável por meio de recurso ou revisão”.
[9] DANTAS, San Tiago apud MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Op. cit., p.181.
[10] FREIRE, Paulo. Educação e mudança, p. 18-19.
[11] FELIPE, Sônia T. Ética na pesquisa. Texto apresentado na VI Semana da Pesquisa da UFSC, Florianópolis, 1998, p. 5 e 6.
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