A fraternidade como categoria jurídico-constitucional
Carlos Augusto Alcântara Machado (*)
1. Considerações introdutórias
Tradicionalmente o tema FRATERNIDADE é enfrentado como um ideal de filosofia política ou social, ou mesmo como categoria política, mas não como uma categoria jurídica.
Logo, percebe-se uma natural dificuldade para a análise do tema numa perspectiva jurídica, porquanto, como registra Fausto Goria , em geral, compreende-se a fraternidade como algo que se desenvolve espontaneamente, o que seria incompatível com o Direito, caracterizado pelo uso da coatividade.
Como se sabe, fraternidade remete imediatamente à idéia de consangüinidade, laços entre parentes, designando a qualidade que liga membros de uma mesma família.
Tendo como referencial os documentos bíblicos – no Antigo Testamento, por exemplo – o termo irmãos era utilizado para indicar os membros da mesma família; da mesma tribo; como oposição aos estrangeiros; ou para indicar os originários de um mesmo tronco familiar. Depois passou a ser utilizado para as pessoas ligadas pela mesma fé; por aliança ou até por aqueles que desempenhavam os mesmos papéis ou funções.
No Novo Testamento, a doutrina cristã, em face dos ensinamentos de Jesus Cristo, alargou sobremaneira a idéia de fraternidade, com a afirmação e a proclamação de que todos são irmãos, pois filhos do mesmo Pai que está no céu.
Independentemente de convicção religiosa, a fraternidade, nesta exposição será apresentada como uma categoria relacional da humanidade, superando, inclusive o conceito aristotélico de amizade política, onde por meio dele o filósofo grego defendia que os cidadãos se unem, em consenso, para instituir uma determinada comunidade política. Como conciliar, por exemplo, os interesses, nessa linha de abordagem não dotada universalidade, dos países pobres, em confronto com o dos países ricos?
A idéia de fraternidade que se pretende difundir exprime igualdade de dignidade entre todos os homens, independente de organização em comunidades politicamente institucionalizadas.
Partir-se-á da doutrina de Chiara Lubich , quando afirma que a fraternidade é a “categoria de pensamento capaz de conjugar a unidade e a distinção a que anseia a humanidade contemporânea”.
Numa perspectiva puramente política, a análise do tema poderia ser até mais assimilável. Mas como abordá-lo juridicamente ?
A fraternidade e o direito não são necessariamente excludentes, uma vez que fraternidade, enquanto valor, vem sendo proclamada por algumas Constituições modernas, ao lado de outros historicamente consagrados como a igualdade e a liberdade.
No entanto, para enfrentar um tema considerado por muitos e particularmente para os juristas em geral como extra-jurídico ou meta jurídico, é mister que seja posta uma premissa, sem qual a fraternidade não pode ser perseguida: o reconhecimento da igualdade entre todos os seres humanos. Evidentemente que tal igualdade é antes de tudo uma igualdade em dignidade. No entanto, dignidade considerada numa perspectiva dinâmica e não estática. É dizer: entender a pessoa visando sua própria realização em comunidade; sua participação com outras pessoas, num contexto relacional .
2. Liberdade, Igualdade e Fraternidade: evolução do constitucionalismo moderno
O direito positivo nasce, como se sabe, de opções realizadas pelo legislador para, disciplinando condutas, estabelecer regras de convivência social. Na clássica formulação kelseniana a produção do Direito será sempre decorrente de um ato arbitrário do poder.
Todavia, ao longo da história da humanidade, percebeu-se que há determinados direitos, pois decorrentes da própria natureza humana, que tem que ser assegurados, visto que se inserem num conjunto de bens da vida não suscetíveis de submissão ao arbítrio do Estado.
Tais direitos, caracterizados como inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis, foram gravados com a nota de fundamentalidade.
A consagração de direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos ocorreu paulatinamente e tem uma estreita relação com a necessidade de contenção do poder e o advento do chamado constitucionalismo moderno.
As origens mais próximas do constitucionalismo moderno podem ser remetidas a dois importantes documentos do século XVIII: a Declaração de Virgínia, de 1776, no continente americano e, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, conseqüência da Revolução Francesa e da queda do regime absolutista. Neste último documento histórico deu-se especial ênfase aos valores liberdade, igualdade, propriedade e legalidade.
A Revolução Francesa, portanto, com o seu ideário, é o marco histórico inafastável para o estudo do tema.
O seu lema – liberdade, igualdade e fraternidade – cuja origem é atribuída por alguns ao movimento maçom ou mesmo aos iluministas, na verdade encontra raízes na doutrina cristã. A difusão de tal lema na cultura européia pode e deve ser tributada aos autores católicos do século XVII, inspirados na tradição dos chamados Padres da Igreja.
É de se constatar, contudo, que a positivação das declarações de direitos, com a incorporação dos valores liberdade, igualdade e fraternidade, sempre partiu de uma concepção flagrantemente individualista dos direitos estabelecidos. A idéia de fraternidade universal, no limiar do desenvolvimento dos valores destacados, recebeu severas críticas dos iluministas, encontrando uma forte resistência na consagração jurídica, sob a justificativa de que enfraquecia a coesão cívica e somente deveria ser praticada no interior do próprio Estado .
Com o desenvolvimento do constitucionalismo moderno e depois de transcorridas duas décadas do séc. XIX é que as declarações de direitos passaram a integrar o corpo formal das Constituições, destacando-se o pioneirismo da Constituição da Bélgica de 1832 e, antes ainda, a Constituição Imperial brasileira de 1824, ao contemplar no seu art. 179, a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos brasileiros.
O mundo conheceu, ainda nas primeiras décadas do séc. XIX, a constitucionalização da primeira geração ou primeira dimensão dos direitos fundamentais, direitos de status negativus que limitavam a atuação estatal, impondo ao Estado um dever de abstenção. Protegiam, por conseguinte, a liberdade dos indivíduos. Nessa dimensão também estariam incluídos os direitos de status activus, que possibilitavam a participação do cidadão na formação da vontade estatal.
Resumidamente, invocando as lições de Ingo Wolfgang Sarlet , é de se afirmar que os direitos de primeira dimensão
“são o produto do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder”.
Direitos civis e políticos, enfim.
Tratando do tema o Prof. Paulo Bonavides averba que
“no liberalismo, o valor da liberdade, segundo Vierkandt, cinge-se à exaltação do indivíduo e de sua personalidade, com a preconizada ausência e desprezo da coação estatal. Quanto menos palpável a presença do Estado nos atos da vida humana, mas larga e generosa a esfera de liberdade outorgada ao indivíduo. Caberia a este fazer ou deixar de fazer o que lhe aprouvesse”.
Vive-se a era do Estado Liberal.
O tempo fez com que o direito se ressentisse da situação e a sociedade reclamou igualdade, porquanto no liberalismo tal valor era meramente formal, inexistindo de fato. As gritantes desigualdades pessoais e sociais eram mascaradas e o povo oprimido exigia igualdade.
O período que marca o fim da primeira grande guerra proporcionou um repensar do Estado e funcionou como um trampolim para que a sociedade alcançasse mais um estágio: o advento do Estado Social, com especial destaque para o valor igualdade. A sempre referida Constituição de Weimar de 1919 e a Constituição do México de 1917 foram pioneiras na consagração dos direitos de segunda geração ou de segunda dimensão , direitos sociais, econômicos e culturais. Não se pode olvidar, nesse contexto, o advento da Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado, de 1918, gestada no ideário da Revolução Russa de 1917.
Direitos de status positivus foram assegurados e os indivíduos passaram a poder exigir do Estado prestações específicas, materializadas em políticas públicas.
No Brasil, o marco de desenvolvimento dos direitos sociais e econômicos foi a Constituição de 1934.
Ultrapassadas as dimensões iniciais dos direitos fundamentais, chega-se à sua terceira geração ou dimensão.
Surge espaço para a consagração dos direitos de fraternidade e de solidariedade que, como lembra Ingo Wolfgang Sarlet , “trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa. Inserem-se nessa categoria, por exemplo, os direitos à paz, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos e têm como distinção o fato de serem universais, ou, quando menos, transindividuais ou metaindividuais.
Há, ainda, quem defenda a existência de uma quarta dimensão, resultado da globalização dos direitos. O Prof. Paulo Bonavides enquadra como de quarta dimensão os direitos à democracia direta, à informação e ao pluralismo. Dirley da Cunha Júnior , a seu turno, acrescenta os direitos contra manipulações genéticas, relacionados à biotecnologia.
De terceira ou de quarta dimensão, os sistemas jurídicos, com essa nova etapa – ou etapas – dos direitos fundamentais, acolheram uma nascente e virginal fase na evolução do constitucionalismo: do liberal para o social e agora, do social para o fraternal, como, com ineditismo, vem defendendo no Brasil, o Ministro Carlos Britto do Supremo Tribunal Federal .
O valor fraternidade foi, enfim, reconhecido. Recorde-se que tanto na Constituição Portuguesa de 1976, como na Brasileira de 1988, há referências expressas à fraternidade ou à solidariedade.
Na vigente Constituição lusitana, logo no preâmbulo, o constituinte português registrou um relevante compromisso: fazer de Portugal um país mais fraterno. Logo no art. 1º, um importante empenho: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
No decorrer do seu texto, por diversas vezes (arts. 63º, 66º, 71º e 73º), foi empregado o substantivo solidariedade no trato de temas como deficientes, meio ambiente, educação e economia. Utilizou o texto magno português expressões como solidariedade entre gerações; solidariedade social, espírito de tolerância e compreensão mútua.
Na Carta-Cidadã de 05 de outubro de 1988, de igual forma, o legislador constituinte pátrio, ao se comprometer com a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, apresentou os seus valores supremos, logo no Preâmbulo: liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça. Em seguida, após traçar toda uma base principiológica, estabeleceu como objetivo fundamental da República Federativa a construção de uma sociedade solidária (art. 3º, I – CF).
Para tanto, o Estado brasileiro terá que garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, II a IV).
Atingiu-se, por completo, após alguns séculos de desenvolvimento, o antigo lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
A Carta Constitucional vigente absorveu os três valores do movimento revolucionário de 1789 ao definir como o primeiro objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária: liberdade, igualdade e fraternidade.
Desde a consagração do famoso mandamento inserto no art. 16 da Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão de 1789 que os direitos fundamentais passaram a ser o núcleo material ou substancial das Constituições.
No entanto, é com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada na Assembléia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, que importantes passos foram dados, indo muito além daquela de 1789.
Como aduz Marco Aquini , a Declaração de 1948 diferencia-se da Declaração Francesa de 1789, particularmente, pelo seu caráter de universalidade e pelo expresso reconhecimento da responsabilidade de todos na realização dos direitos humanos.
Proclamou, no seu art. 1º, que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir uns aos outros com espírito de fraternidade”.
No art. 29, item 1, outra importante disposição: “toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível”.
As Constituições vêm, paulatinamente, assimilando valores universais e direitos que transcendem aos limites da soberania do próprio Estado.
No caso especificamente brasileiro, após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004 (acréscimo do § 3º ao art. 5º da Constituição Federal), também os direitos humanos, objeto de tratados ou convenções internacionais, aprovados pelo Congresso Nacional, em dois turnos e por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão considerados direitos fundamentais, porquanto ingressarão no sistema jurídico pátrio com status equivalente às emendas constitucionais.
3. A dignidade da pessoa humana
Posta a questão dos direitos fundamentais em termos doutrinários, com base sempre no entendimento dominante, imprescindível dar mais um passo.
Questiona-se: São os direitos fundamentais absolutos? Como tratar o ser humano, como titular de direitos fundamentais, numa sociedade pluralista, que tende para a fraternidade, como é o desejo contemporâneo, expresso, por exemplo, nas Constituições do Brasil e de Portugal? Há, ainda, espaço para nacionalismos ou individualismos sem limites? O mundo não está reclamando novos paradigmas, como se percebe hoje na formação da União Européia?
Como enfrentar os conflitos sociais numa perspectiva de garantia dos direitos fundamentais?
Ensina Vera Araújo , citando Coser, que “a existência de conflitos no interior de um grupo e entre eles é uma caraterística perene da vida social, um componente essencial da interação em cada sociedade conhecida”.
Não se pretende, como concluiu a douta socióloga citada, eliminar os conflitos, mas compreendê-los, particularmente quando se tornam prejudiciais ou disfuncionais ao bem-comum.
Nesse contexto, assumirá papel relevantíssimo a análise e compreensão do princípio da dignidade da pessoa humana.
A positivação do princípio da dignidade da pessoa humana, gravado hoje na Constituição brasileira, no seu art. 1º, III, como em outras Cartas Constitucionais (Portugal, Alemanha, etc.) recebeu forte influência da doutrina social da igreja católica.
As raízes evangélicas do princípio estão claramente identificadas. Como registrado na exortação apostólica de João Paulo II, intitulada Christifideles Laici , de todas as criaturas terrenas, só o homem é pessoa, sujeito consciente e livre e, precisamente por isso, centro e vértice de tudo o que existe sobre a terra.
A doutrina social da Igreja sempre reconheceu que a dignidade pessoal é o bem mais precioso que o homem tem, graças ao qual ele transcende em valor a todo o mundo material.
Nessa linha, conclui o indigitado documento da igreja católica que, em virtude da sua dignidade pessoal, o ser humano é sempre um valor em si e por si, e exige ser tratado como tal, e nunca ser considerado e tratado como um objeto que se usa, um instrumento, uma coisa.
Isto em razão das singulares características de unicidade e de irrepetibilidade relativas a toda pessoa. A dignidade pessoal constitui o fundamento de igualdade de todos os homens entre si.
Partindo de tais premissas e reconhecendo que a pessoa humana não existe pra viver isoladamente, mas com os outros em comunidade , de suma importância a correta compreensão do valor “dignidade”.
A dignidade da pessoa humana está na raiz da consagração dos direitos fundamentais.
Buscar-se-á, inicialmente, encontrar uma delimitação do conceito de dignidade da pessoa humana.
Entendida como um valor inerente a todo e qualquer ser humano, integrando a sua própria natureza, a compreensão da dignidade da pessoa humana tem as suas raízes no ideário cristão e sempre associado ao conceito de pessoa.
Recorda Fernando Ferreira dos Santos, em primoroso artigo , que o
“O conceito de pessoa, como categoria espiritual, como subjetividade, que possui valor em si mesmo, como ser de fins absolutos, e que, em conseqüência, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais e possui dignidade, surge com o Cristianismo, com a chamada filosofia patrística, sendo depois desenvolvida pelos escolásticos”.
Tomás de Aquino, em sua Summa Theologica, encontra o fundamento da dignidade no fato de o homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus.
Com o desenvolvimento da doutrina jusnaturalista não mais fundamentada em razões teológicas e passando o direito por um processo de racionalização, é com Immanuel Kant que se completa o processo de secularização da dignidade .
Afirma Kant:
“O Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim” .
Kant legou ao mundo a constatação de que o homem será sempre fim, nunca meio. Jamais poderá ser instrumentalizado ou “coisificado”.
No entanto, percebe-se que, independentemente de possuir fundamento teocêntrico ou antropocêntrico, a dignidade será inexoravelmente compreendida como uma “qualidade intrínseca da pessoa humana” .
A dignidade da pessoa humana cumprirá um papel de vital importância na compreensão do alcance dos direitos fundamentais. Apresentada como fundamento do Estado Democrático de Direito, todos os direitos fundamentais possuirão um conteúdo mínimo de dignidade.
Tal conteúdo mínimo da dignidade, denominado como núcleo essencial , mínimo existencial , minimum invulnerável , ou mesmo reconhecido como o “coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa” , não pode deixar de ser concebido com caráter absoluto.
Como elemento intrínseco ao ser humano não será objeto de concessões, mitigações ou relativizações. É o núcleo; é o mínimo e, em nenhuma hipótese poderá dar espaço a outro princípio eventualmente em conflito.
No texto da Constituição da República Federativa do Brasil, esse minimum invulnerável, é encontrado, por exemplo, na cláusula que assegura que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), ou naquela outra que assegura aos presos o respeito à integridade física (art. 5º, XLIX), ou mesmo na regra que traz a garantia do salário mínimo (art. 7º, IV). Não há possibilidade alguma de concessões.
Dignas de destaque as observações de Jacques Maritain quando afirmou que
“a pessoa tem uma dignidade absoluta porquanto está em relação direta com o absoluto, no qual somente ela pode encontrar sua realização; sua pátria espiritual é todo o universo dos bens que têm valor absoluto, que refletem de algum modo um Absoluto superior ao mundo e que são atraídos por Ele”.
Recorde-se que o homem é anterior ao Direito e ao Estado. Acima e antes de qualquer de coisa tem o direito de ser reconhecido como homem/pessoa. E não há homem/pessoa, destituído de dignidade. Assim, a primeira e fundamental função do direito é a tutela da dignidade da pessoa humana. Depois, cabe ao Direito assegurar que as relações entre os homens se desenvolvam regularmente .
Partindo desse novo paradigma, o caráter relacional e intersubjetivo dos direitos – relação entre sujeitos – receberá novos contornos. Não se concebe uma intersubjetividade excludente. Precisamos compreender o Direito como um instrumento que regulamenta condutas visando fazer com que os seres humanos vivem com o outro e não apesar do outro.
Em cada ser humano habita, num certo sentido, toda humanidade. O outro, também sou eu. Tudo se reduz à unidade. Tudo é “um” .
Os ordenamentos jurídicos contemporâneos lograram certo êxito em combater a opressão e o arbítrio, garantindo, dentro do possível, liberdade e igualdade.
No entanto, serão fadados ao insucesso se mais um passo não for dado em busca da fraternidade, pois, em última análise, tal valor torna-se premissa e condição dos outros dois valores (liberdade e igualdade).
A sociedade, os ordenamentos jurídicos, os Estados, enfim, ao consagrarem os princípios da igualdade e da liberdade, traduzidos no plano jurídico, como averba Maria Voce , reforçaram somente os direitos individuais. Tal postura não é suficiente e não fornece respostas satisfatórias para assegurar uma vida de relações e de comunidade, pois se ressente de outro valor fundamental: a fraternidade.
Mesmo, ainda, com caráter individualista, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, no seu art. 4º, consubstanciava o princípio de que “a liberdade consiste em pode fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”.
O mundo atual não sobreviverá sem práticas solidárias. Está na essência do ser humano e é uma exigência inafastável.
Quando o texto da República Federativa do Brasil indica como um dos seus objetivos – o primeiro – construir uma sociedade livre, justa e solidária, não está enunciando, como conclui Daniel Sarmento ,
“uma diretriz política desvestida de qualquer eficácia normativa. Pelo contrário, ela expressa um princípio jurídico, que, apesar da sua abertura e indeterminação semântica, é dotado de algum grau de eficácia imediata e que pode atuar, no mínimo, como vetor interpretativo da ordem jurídica como um todo”.
Aduz, com propriedade, ainda o mestre:
“Na verdade, a solidariedade [aqui também é possível referir-se à fraternidade] implica reconhecimento de que, embora cada um de nós componha uma individualidade, irredutível ao todo, estamos também juntos, de alguma forma irmanados por um destino comum. Ela significa que a sociedade não deve ser um locus da concorrência entre indivíduos isolados, perseguindo projetos pessoais antagônicos, mas sim um espaço de diálogo, cooperação e colaboração entre pessoas livres e iguais, que se reconheçam como tais”.
Hoje o direito já se fundamenta na solidariedade para justificar a consagração de direitos transindividuais ou metaindividuais.
Justifica, ainda, na solidariedade, práticas de ações afirmativas e de justiça distributiva.
Contudo ainda é muito pouco.
4. O Advento do Constitucionalismo Fraternal
Como visto, o constitucionalismo moderno conheceu duas grandes fases: a primeira, fundada no liberalismo (constitucionalismo liberal), onde o valor liberdade esteve em destaque e a segunda, caracterizada pela social democracia (constitucionalismo social), com especial ênfase ao valor igualdade.
O texto da Constituição de 1988 inaugurou no nosso país, como vem destacando o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Britto, num certo sentido em sintonia com o que prega o Movimento Comunhão e Direito, o Constitucionalismo Fraternal ou, como afirmam outros, o Constitucionalismo Altruístico.
Define o Douto Ministro da mais alta Corte brasileira, o constitucionalismo fraternal como “a terceira e possivelmente a última fase, o clímax do constitucionalismo”. Continua o jurista, tratando do constitucionalismo: “Depois que ele assumiu uma feição liberal ou libertária, uma função social ou igualitária, agora chega à terceira fase, que é a fraternidade, para ombrear todas as pessoas em termos de respeito, referência e consideração...”.
Às tradicionais dimensões consagradas nos ordenamentos jurídicos vigentes incorpora-se outra, de igual forma como categoria constitucional.
Ao afirmar a Constituição brasileira que é objetivo fundamental da República Federativa construir uma sociedade livre, justa e solidária, constata-se, cristalinamente, o reconhecimento de dimensões materializadas em três valores distintos, mas em simbiose perfeita:
a) Uma dimensão política: construir uma sociedade livre;
b) Uma dimensão social: construir uma sociedade justa;
c) Uma dimensão fraternal: construir uma sociedade solidária.
Cada uma das três dimensões, ao encerrar valores próprios, liberdade, igualdade e fraternidade, instituem categorias constitucionais.
A Constituição busca com a dimensão fraternal, uma integração comunitária , uma vida em comunhão. Se vivermos efetivamente em comunidade, estaremos, de fato, numa comum unidade. Em uma palavra: fraternidade.
Uma sociedade fraterna é uma sociedade sem preconceitos e pluralista. E esses valores estão presentes na Constituição de 1988. Averbe-se que a integração comunitária é mais do que inclusão social. Não se reduz a ações distributivistas, de inclusão social que se situam somente no plano de gastos públicos.
E essa inegavelmente é a tendência que cada vez mais se observa nos ordenamentos constitucionais contemporâneos, particularmente na Constituição de 1988: combate a qualquer forma de preconceito, ações afirmativas (deficientes, mulheres, negros), etc..
É o ordenamento jurídico a serviço da realização – ou pelo menos em busca – da fraternidade.
Urge que se inaugure, de fato, um Estado Fraternal.
E a idéia vem ganhando força nos últimos tempos.
Na Enciclopédia livre WIKIPÉDIA , divulgada na rede mundial de computadores, tratando do constitucionalismo, encontra-se um verbete com o título constitucionalismo do futuro, merecendo transcrição:
“Se o constitucionalismo tem sido marcado pela limitação do poder, opondo-se ao governo arbitrário, o seu conteúdo mostra-se variável, desde as suas origens.
Uma nova era histórico-constitucional surge no alvorecer do século XXI, com a perspectiva de que ao constitucionalismo social seja incorporado o constitucionalismo fraternal e de solidariedade.
Consoante assinala Dromi, o futuro do constitucionalismo deve “estar influenciado até identificar-se com a verdade, a solidariedade, o consenso, a continuidade, a participação, a integração e a universalização”, alcançando um ponto de equilíbrio as concepções extraídas do constitucionalismo moderno e os excessos do constitucionalismo contemporâneo.
Os valores acima apontados, e que marcarão, certamente, o constitucionalismo do futuro, podem ser assim resenhados:
I) verdade – as constituições não mais conterão promessas impossíveis de serem realizadas, nem consagrarão mentiras. Para tanto, o referido publicista argentino analisa as normas que, de natureza programática, encerram projetos inalcançáveis pela maioria dos Estados, defendendo a necessidade de sua erradicação dos textos constitucionais. Por isso é que o constitucionalismo será verdadeiro, transparente e eficaz;
II) solidariedade – as constituições do futuro aproximar-se-ão de uma nova idéia de igualdade, baseada na solidariedade dos povos, na dignidade da pessoa humana e na justiça social, com a eliminação das discriminações;
III) continuidade – é muito perigoso em nosso tempo conceber constituições que produzam uma ruptura da denominada lógica dos antecedentes, pelo que as reformas constitucionais, embora objetivando adaptar os textos constitucionais às exigências da realidade, ocorrerão com ponderação e equilíbrio, dando continuidade ao caminho traçado;
IV) participação – o povo e os corpos intermediários da sociedade participarão de forma ativa, integral e equilibrada no processo político (democracia participativa) eliminando-se, com isso, a indiferença social;
V) integração – haverá integração, prevista nas constituições, mediante cláusulas que prevejam órgãos supranacionais, dos planos interno e externo do Estado, refletindo a integração espiritual, moral, ética e institucional dos povos;
VI) universalização – os direitos fundamentais internacionais serão previstos nas constituições do futuro, com a prevalência universal da dignidade do homem, e serão eliminadas quaisquer formas de desumanização”.
Na prática forense, igualmente, decisões com lastro no princípio da fraternidade já podem ser encontradas.
No julgamento da ADI 3.768-4/DF , o Supremo Tribunal Federal garantiu a gratuidade dos transportes públicos urbanos e semi-urbanos para os idosos.
No voto da eminente Relatora, Ministra Carmem Lúcia, com base no art. 230 da Constituição Federal, destaca-se a necessidade de se garantir o direito de qualidade de vida digna para aquele que não pode pagar ou já colaborou com a sociedade em períodos pretéritos. Registrou a Ministra-Relatora que aos idosos assiste, nesta fase da vida, direito a ser assumido pela sociedade quanto ao ônus decorrente do uso do transporte público.
Digno de citação o seguinte trecho do seu voto:
“A gratuidade do transporte coletivo representa uma condição mínima de mobilidade, a favorecer a participação dos idosos na comunidade, assim como viabiliza a concretização de sua dignidade e de seu bem estar, não se compatibiliza com condicionamento posto pelo princípio da reserva do possível”
E continua, concluindo que “aquele princípio haverá de ser compatibilizar com a garantia do mínimo existencial...”.
Em manifestação de voto, o Ministro Carlos Britto, concluiu que o direito em discussão seria um direito fraternal, a exigir do Estado “ações afirmativas, compensatórias de desvantagens historicamente experimentadas por segmentos sociais como os dos negros, dos índios, das mulheres, dos portadores de deficiências e dos idosos”.
Nesse toar, possibilitando inovações na prática jurídica a Constituição e o próprio Estado adotam posturas sintonizadas com o constitucionalismo fraternal.
Recordemos a afirmação do Dr. Munir Cury no final da sua brilhante exposição no I Congresso Norte-Nordeste de Operadores do Direito, realizado na cidade de São Luís, em outubro de 2007, valendo-se do magistério de Chiara Lubich:
“Os obstáculos para a harmonia da convivência humana não são apenas de ordem jurídica, ou seja, devidos à falta de leis que regulem esse convívio; dependem de atitudes, mais profundas, morais, espirituais, do valor que damos à pessoa humana, de como consideramos o outro”.
A Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 16 de junho de 1776, reconhecendo direitos inatos de todos os homens, destacava o de buscar e obter a felicidade (item I, parte final).
Não se trata de ingenuidade . Mas, se ingenuidade for defender práticas fraternas; que todos pertencemos à uma mesma família; que somos responsáveis uns pelos outros, e que a regra de ouro – fazer ao outro aquilo que gostaria que fosse feito a mim – torne-se uma realidade, que sejamos todos ingênuos !!
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu preâmbulo, reconhece, desde 1948, que todos somos membros de uma mesma família, a família humana.
Desde o surgimento do constitucionalismo moderno, mais de dois séculos se passaram e o mundo precisa compreender que práticas solidárias mais efetivas devem ser consagradas. Sem fraternidade não há felicidade.
Concluo, invocando, mais uma vez o magistério do Min. Carlos Britto , quando afirma que “a Fraternidade é o ponto de unidade a que se chega pela conciliação possível entre os extremos da Liberdade, de um lado, e, de outro, da Igualdade. A comprovação de que, também nos domínios do Direito e da Política, a virtude esta sempre no meio (medius in virtus). Com a plena compreensão, todavia, de que não se chega à unidade sem antes passar pelas dualidades. Este, o fascínio, o mistério, o milagre da vida”.
De tudo que foi exposto, penso que é perfeitamente possível concluir que no constitucionalismo contemporâneo, a fraternidade, de fato, é uma categoria jurídica.
(*) Promotor de Justiça em Sergipe, Mestre em Direito Constitucional pela UFC, professor de Direito Constitucional em cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Tiradentes e da Universidade Federal de Sergipe, autor dos livros Mandado de Injunção – um instrumento de efetividade da Constituição (Ed. Atlas) e Direito Constitucional (Editora Revista dos Tribunais).
(**) Conferência proferida no Congresso Nacional – “Direito e Fraternidade”, promovido pelo Movimento Comunhão e Direito, em 26 de janeiro de 2008, no Auditório Mariápolis Ginetta, Vargem Grande Paulista/São Paulo.
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FONTE - com autorização do autor,
http://www.academus.pro.br/site/pg.asp?pagina=detalhe_artigo&titulo=Artigos&codigo=1439
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
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