O Cânon 50 e o Procedimento Administrativo entre eficácia e garantia
(apresentação da dissertação doutoral)
Caríssimos e ilustres colegas canonistas,
I. O objeto do estudo
Desde já expresso minha gratidão pela atenção que dispensam à exposição a que dou início. O tema é certamente árido, o objeto da exposição desperta interesse em quem tem interesses específicos no direito administrativo e no estudo das relações entre a autoridade eclesiástica e os fiéis. Posso adiantar que o interesse do tema é visitar na história do cân. 50 o desenvolvimento de uma norma que regula o exercício da autoridade, indicando modos concretos de viver a prudência ao tomar decisões ou ao prover o bem comum da comunidade eclesiástica.
Conta-se de São Bernardo. Durante um conclave chegou-se a um impasse; havia três candidatos: um muito santo, outro muito sábio e um terceiro muito prudente. Ao Santo Abade de Claraval perguntaram a quem se deveria eleger. Ao que ele respondeu: “Si sanctus est, oret pro nobis; si sapiens est, doceat nos; si prudens est, regat nos”: “Se é santo, que interceda por nós a Deus; se é sábio que nos instrua; se é prudente, que nos governe”.
O bom governo eclesiástico, requer portanto o exercício da virtude da prudência, que é o hábito de escolher os meios melhores e mais aptos para se alcançar um determinado bem, subordinado à salus animarum.
A Igreja, Mãe e Mestra, no seu ordenamento jurídico procura dar parâmetros jurídicos, técnicas, instituições, que mantenham a atuação da autoridade no âmbito da prudência ou do bom governo. Os vínculos jurídicos são o que chamamos princípio de legalidade e as margens de avaliação prudencial são o que chamamos discricionariedade: que no código aparece sob as expressões: pro prudenti iudicio, prudenti arbitrio, etc.
É no procedimento de tomada de decisões que o sujeito investido de autoridade fica vinculado a certas operações de caráter cognitivo, que lhe consentirão avaliar e formar a vontade institucional da entidade que governa. Este é o objeto do estudo.
A dissertação, que foi apresentada junto da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma, desenvolve-se em torno da história da formação do cânone 50 do Código de Direito Canônico, que assim reza: “Antes de baixar um decreto singular, a autoridade colha as necessárias informações e provas, e, na medida do possível, ouça aqueles cujos direitos possam ser lesados”.
A redação da norma é evidentemente muito lacônica, mas estabelece lindes procedimentais onde canalizar o exercício do poder discricionário do administrador eclesiástico. Por isso, o cân. 50 é mencionado em conexão com o procedimento administrativo já na primeira parte do título da dissertação “o cân. 50 e o procedimento administrativo...” como objeto material do estudo.
A segunda parte do título “... entre eficácia e garantia...” ressalta duas perspectivas concorrentes na doutrina e na praxe do procedimento administrativo: a eficácia e a garantia precisamente.
Embora – como veremos mais adiante – a perspectiva da garantia tenha sido predominante na história da formação deste cânone, o interesse do meu estudo era o de tratar o procedimento administrativo na perspectiva da eficácia, também chamada de produção. Esta perspectiva está no centro das investigações feitas e constitui o objeto formal da minha dissertação. Em outras palavras, nesse trabalho se estuda a norma referente ao procedimento de formação do ato administrativo singular ou – como o chama a doutrina italiana – provedimento administrativo, norma esta que está contida no cânone 50 do Codex Iuris Canonici.
II. Motivos da escolha do tema
Permitam-me uma breve digressão antes de entrar propriamente no mérito do trabalho em questão.
Um trabalho científico tem a característica de se apresentar como uma investigação sobre um determinado tema com critérios de objetividade científica, ou seja, fundada sobre documentos, sobre dados históricos documentáveis e com critérios de lógica interna. No entanto, não existe uma objetividade absoluta. O sujeito que investiga é uma pessoa concreta situada num determinado contexto geográfico, histórico e com um arcabouço cultural. Por esta razão, na sua formação intelectual já tem bem assimilada uma série de conceitos e pré-conceitos (no sentido de conceitos prévios). Ele é, portanto, é influenciado pela biografia, pelo “background” cultural ou ideológico, quer na escolha do objeto de investigação quer do modo de abordá-lo.
Por quais razões escolhi este tema? Dentre todas as razões, parece-me que a primeira razão é a biográfica.
A infância e a juventude, eu as vivi no contexto da ditadura militar brasileira (1964 1984). O contexto do regime repressivo e autoritário em que se deu toda a minha formação cultural da infância à juventude, suscitou inicialmente um excessiva estima do sentido da autoridade. Mas como o poder, especialmente se exercido de modo arbitrário, desgasta tanto os que o têm quanto os que o sofrem, (il potere logora sia quelli che ce l'hanno sia quelli che lo subiscono), já nos anos mais próximos do fim da ditadura as muitas incongruências do regime militar despertaram alguns questionamentos aos quais não podia me furtar. Os generais-presidentes usavam com muita ligeireza atos substancialmente administrativos para modificar até mesmo a Carta constitucional, sempre mortificando gravemente os direitos e as liberdades fundamentais dos cidadãos.
Com os movimentos estudantis e operários iniciados nos últimos anos da década de 70 em protesto contra a repressão, aprendi – certamente de modo não muito elaborado – a importância da promoção dos direitos da pessoa e da liberdade de expressão, juntamente com o anelo, a aspiração por novas formas de governo mais participativas e atentas às verdadeiras necessidades da comunidade. Sobretudo cresceu em mim uma forte aversão ao autoritarismo de qualquer cor e, contemporaneamente, um grande interesse pelas formas corretas e justas de exercício da autoridade.
Muitos anos mais tarde, já sacerdote, vi-me a estudar direito canônico no então chamado Ateneu Romano da Santa Cruz – hoje Pontifícia Universidade da Santa Cruz. Dentre os ramos do direito canônico, imediatamente me senti atraído pelo direito administrativo, em particular pelo tema da discricionariedade administrativa, do exercício do poder discricionário no governo da Igreja.
Ao pedir ao Professor Arrieta que me orientasse na pesquisa e na preparação da tese doutoral, manifestei-lhe logo o meu entusiasmo. Ele prontamente me disse que o assunto, apesar de apaixonante, era demasiado amplo. E abrindo o Código de Direito Canônico me fez ler o comentário de Pedro Lombardía ao cân. 50 e me disse que aquela norma raquítica poderia concentrar a investigação sobre os mecanismos de controle da discricionariedade no direito canônico.
Confesso que fiquei decepcionado com a contraproposta, porque desejava estudar o tema da discricionariedade in recto. A indicação do orientador eleito pareceu-me um balde de água fria nas minhas pretensões intelectuais, porque me faria dar voltas ao redor do tema que eu tinha escolhido com paixão. Mais tarde me apercebi da enormidade do meu desejo e me apaixonei pelo tema do procedimento administrativo, que se tornou o verdadeiro leitmotiv do meu estudo.
III. Início da pesquisa
Para introduzir-me no tema, comecei a estudar a história do conceito de discricionariedade na dogmática jurídica da Europa continental, deixando de lado a tradição do Common Law, com o qual tive de me embater mais tarde.
Este estudo preparatório foi-me de grande utilidade para entender em qual ambiente de cultura jurídica tiveram origem os projetos legislativos canônicos que levaram à redação do atual cân. 50, o qual não tinha precedente algum no Código Pio-Beneditino.
Em 1994, comecei a trabalhar no Conselho Pontifício para os Textos Legislativos, onde se encontra até hoje todo o arquivo da Pontifícia Comissão para a Revisão do Código de Direito Canônico, onde tive acesso aos documentos originais dos esquemas preparados eplo Grupo de estudos De Procedura Administrativa.
O acesso a este arquivo deu-me a oportunidade única de publicar no corpo da dissertação uma documentação que – a meu modo de ver – será muito útil para futuras pesquisas não só sobre o procedimento administrativo, como também sobre a justiça administrativa na Igreja.
A motivação acadêmica do tema da tese uniu-se à paixão adquirida pelos procedimentos administrativos: um assunto certamente interessante para os que trabalham na área, mas também para quem tem a peito o bom governo na sociedade eclesial, no equilíbrio entre discricionariedade e a legalidade.
IV. A Doutrina
O desenvolvimento de um corpo normativo orgânico e geral sobre o procedimento administrativo, ou mesmo de códigos de procedimento administrativo, responde à necessidade de promover a harmonia da paz na sociedade mediante a atuação justa e prudente por parte das autoridades. Assim se procura prevenir ou por remédio aos conflitos eventualmente surgidos no desempenho da função de gestão da coisa pública. O procedimento representa, sobretudo para a função de governo, um modo de atuar que requer da parte do administrador a combinação de dados cognitivos com o exercício da prudência no ato de tomar decisões ou de prover ao bem público do corpo social que ele deve governar.
O mistério da encarnação e a historicidade da comunidade eclesial requerem que os seus Pastores, ao governá-la, além dos meios sobrenaturais – sempre necessários –, empreguem também os instrumentos técnicos adequados para assegurar o mais possível que as relações entre governantes e governados se desenrolem segundo a justiça, que está na base da verdadeira caridade.
Os Sagrados Pastores devem, portanto, valer-se também dos instrumentos técnicos fornecidos pela ciência da administração e pelo direito para prover ao bem das almas. Nesse contesto, o procedimento administrativo, ainda que não formalizado em normas jurídicas específicas, é o modo ordinário de atuar no governo da Igreja.
É prudente o administrador que, antes de decidir ou prover em relação a alguma concreta necessidade da comunidade, verifica a própria competência, recolhe as necessárias informações, pede os conselhos e pareceres técnicos oportunos, e empregue tempo para refletir e, ponderando os interesses em jogo, provê com a margem de discrição deixada pelos vínculos jurídicos teleológicos da sua função pública.
As normas sobre o procedimento administrativo não são nada mais do que a formalização do modo de proceder para fornecer ao administrador as lindes juridicas para o exercício do seu poder discricionário. Tais normas, de alguma maneira, impoem a cognição da realidade e do quadro normativo de referência, exigem avaliações e ponderações, tempos de reflexão para o exercício daquilo que se poderia chamar “prudência institucional”. Deste modo, é possível prevenir decisões injustas ou iníquas, prover ao bem comum com o mínimo prejuízo para a esfera jurídica dos eventuais particulares interessados.
No pensamento jurídico contemporâneo, tem se perfilado de modo não raro muito fecundo um intenso debate sobre o tema do procedimento, na medida em que o procedimento se tornou uma categoria quase indispensável em diversos ramos da ciência jurídica. A sua presença prepotente no Direito Público, mas também, não raro, no Direito Privado, revestiu, sobretudo após a Segunda Grande Guerra, uma tal importância que tem sido qualificada como uma “preocupação quase obsessiva”, ou a criticada e excessiva “euforia procedimental”.
O debate sobre o tema dos procedimentos no âmbito jurídico oscilado entre dois excessos: a subestimação ou desprezo e a superestima eufórica (R. Wahl, 1989). De um lado a falta de formalização que expõe ao risco do exercício arbitrário do poder administrativo ou executivo, suscitou em muitos o desejo de vincular ao máximo a atuação do administrador. Doutro lado, havia os que eram avessos à excessiva vinculação do administrador. Estes argumentavam dizendo que as normas demasiado vinculantes expõem a administração pública ao risco de se enrijecerem ou de ficar amarradas a um leito de procuste, na medida em que tolhe ao administrador a discricionariedade que lhe permite uma atuação célere em vista do bem público que não se pode adiar ad kalendas grecas.
A construção dogmática e teorética do procedimento administrativo apareceu inicialmente como resultado dos esforços no âmbito do controle dos atos administrativos. A figura do procedimento administrativo que se desenvolveu em virtude das exigências de tutela não era nada mais do que o ato administrativo examinado retrospectivamente (Berti). Esta perspectiva de formulação do conceito e das normas do procedimento administrativo, a partir do ponto de vista jurisdicional, tem sido chamada por muitos perspectiva de imputação ou patológica. Esta deu origem a diversas figuras de patologias do ato administrativo, identificadas pela jurisprudência na fase preparatória da decisão ou do provedimento e tendia à regulamentação do procedimento de modo semelhante ao processo, com o incremento de elementos garantisticos na fase instrutória.
Mais tarde, veio a desenvolver-se uma outra perspectiva, em sentido oposto, chamada de produção: o procedimento é considerado como o modo de ser da Administração e o modo de realizar-se do direito administrativo ou ainda o fazer-se do ato administrativo. Esta perspectiva põe de manifesto o aspecto teleológico do procedimento administrativo, na medida em que este tende principalmente à satisfação dos interesses públicos (M. S. Giannini, 1970).
No campo do DIREITO CANÔNICO, o estudo do procedimento e dos respectivos projetos normativos advindos depois do Concílio Vaticano II, partiu prevalentemente da perspectiva de imputação. Efetivamente o projeto De Procedura Administrativa foi levado a cabo com a finalidade de dar um quadro legal apto para a administração da justiça administrativa a Sectio altera do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, Secção esta erigida como tribunal administrativo da Igreja Catolica.
Contudo na elaboração do projeto, constatada a séria lacuna normativa concernente ao ato administrativo em geral, viu-se a necessidade de elaborar algumas normas gerais e orgânicas sobre o procedimento de formação do provedimento administrativo, enquanto ato impugnável.
V. A Tese
O objeto do estudo, como disse no início, é a normativa concernente ao procedimento administrativo contida no cânon 50.
O estudo da história da norma procedimental espelha de modo prevalente a perspectiva de produção do ato administrativo, procurando extrair não tanto as suas eventuais patologias, mas aqueles elementos normativos referentes ao exercício do poder administrativo em vista do bem comum da sociedade eclesiástica. Em outras palavras, se ressaltam os aspectos procedimentais que regulam a ação do administrador na medida em que ele procure satisfazer o bem público com o menor prejuízo da esfera jurídica dos administrados.
Esta perspectiva faz evidenciar a dimensão funcional ou a índole diaconal da autoridade na Igreja. Levar-se-á em conta o aspecto garantístico na medida em que a autoridade tem o dever institucional formalizado no Código de 1983 de promover os direitos dos fiéis.
Efetivamente o bem público da Igreja se identifica em última análise com a salus animarum, que compreende também a salvaguarda da posição jurídica de cada um dos fiéis na história e a generosa administração dos bens próprios da Igreja em vista da salvação eterna de cada fiel singularmente tomado.
No primeiro capítulo se faz um estudo histórico do tema do procedimento administrativo na doutrina e na normativa canônica desde a “Sapienti Consilio” até o Con-gresso Internacional dos Canonistas de 1968. Este estudo se volta a uma melhor compreensão do ambiente jurídico e também ideológico em que o Coetus De procedura administrativa começou a trabalhar sobre o projeto a ela confiado pelo Legislador universal.
Do segundo capítulo em diante, o método empregado é o da análise e descrição do iter de cada cânone presente sob o título De decretis extra iudicium ferendis, dos sucessivos esquemas De Procedura administrativa.
O segundo capítulo examina a origem e os primeiros trabalhos do Parvus Coetus De Procedura Administrativa. Este reduzido grupo de estudos nasceu em 1969 no seio do Coetus De processibus, para responder à exigência de produzir um projeto de normas para ordenar a justiça administrativa que deveria depois vir a confluir no projeto mais amplo do Livro sobre os processos.
O esquema prévio preparado por este grupo ficou substancialmente intacto no decorrer das várias sessões de estudo. Alguma modificação mais significativa veio a aconteder após a transformação do Parvus Coetus em uma nova comissão especial formada após o estudo dos dois projetos pelas Conferências episcopais estadunidense e bávara.
O terceiro capítulo toma em exame os sucessivos esboços do projeto de lei sobre a justiça administrativa preparados pela nova comissão, integrada por membros do Parvus coetus de procedura administrativa e por canonistas indicados pelas duas conferências episcopais (americana e alemã), bem como por varios oficiais da Cúria Romana. Trata-se de fato de um projeto de justiça adminstrativa para a Igreja que se deve promulgar antes mesmo do Código de Direito Canônico. Chegou a ser acabado um projeto de Motu proprio intitulado Admni¬strativae potestatis, que o Papa Paulo VI houve por bem não promulgar. Não consta nos autos os motivos desta decisão.
No quarto capítulo nos ocupamos das normas do projeto abandonado de Motu proprio referentes ao procedimento de formação do ato administrativo que serão recolhidas nos respectivos livros do futuro Código de Direito Canônico. Faz-se também uma sucinta comparação com as normas que o Código dos Cânones das Igrejas Orientais tomou do esquema De Procedura administrativa de 1972.
Aqui se entrevê como o quadro normativo do Código oriental, nesta matéria, poderia se tornar um útil critério para preencher as lacunas normativas do ordenamento latino. Certamente juntamente com os critérios indicados pelo cân. 19 do CIC.
Conclusão: O que o estudo trouxe à luz?
O estudo serviu em primeiro lugar para evidenciar – como o tem feito de modo muito crítico boa parte da doutrina contemporânea – que o Legislador não quis dar uma regulamentação orgânica, clara e completa do modus procedendi da autoridade administrativa eclesiástica na produção dos provedimentos administrativos.
No que tange o cân. 50, ele deve ser lido e interpretado levando em conta a sua origem não só próxima como também a origem remota. Efetivamente a perspectiva que dominou o pensamento e o trabalho do grupo de consultores encarregado de preparar as normas que estavam na raiz deste cânone foi a de imputação ou patológica. Assim o ato administrativo que brota do procedimento regulamentado pelo cân. 50 è bem mais o ato impugnável do que o ato de cumprimento da função administrativa no caso concreto.
No entanto, embora sendo dominante entre os consultores a sobredita perspectiva de imputação, durante os trabalhos do coetus os consultores tomaram o cuidado de não multiplicar as normas de garantia, ao menos em sentido estritamente vinculante. Parte dos consultores tinha como preocupação de fundo evitar transpor as formalidades típicas do processo judiciário ao procedimento administrativo. A tutela dos direitos dos fiéis deve, com efeito, ser balanceada com a eficácia da administração publica eclesiástica.
Uma normativa excessivamente marcada pela exigência de garantia teria tido o indesejado efeito de paralisar a administração ou pelo menos de privá-la daquela elasticidade que é tão útil na sua atuação.
O cân. 50, no Código de Direito Canônico é a única norma geral sobre o procedimento administrativo, não referente a procedimentos específicos. Ele prescreve à autoridade alguns passos prévios à emissão do provedimento. Em primeiro lugar a autoridade deve procurar as noticias e provas necessárias. É evidente que qualquer decisão ou provedimento requer que a realidade sobre a qual se quer agir seja conhecida. Mas aqui a norma finalmente promulgada exige que tal conhecimento seja devidamente documentado, ainda que caiba ao mesmo administrador avaliar a necessidade ou não das notícias e provas. Em segundo lugar, o cânone prescreve ouvir aqueles cujos interesses possam ser lesados, mas a cláusula quantum fieri potest deixa ao administrador uma grande liberdade de apreciação e de ação.
De tudo isto emerge a necessidade de pôr conveniente remédio ao fato de esta norma geral não ser completa. Antes de mais nada, recorrendo aos critérios da moral administrativa (a prudência aplicada à atividade de governo), da deontologia dos profissionais do direito que atuam na administração pública, da ciência da administração, entre outras, que podem ajudar a integrar a etapa de formação dos provedimentos administrativos.
Até mesmo o Legislador quis oferecer no cân. 19 do CIC os remédios oportunos para preencher as lacunas: recorrer às leis dadas para casos semelhantes, os princípios gerais do direito aplicados com equidade canônica, a jurisprudência e a praxe da Cúria Romana, assim como o modo de sentir comum e constante dos juristas. Nesse sentido o administrador pode apoiar-se em outras normas procedimentais do Código Latino como também no Código dos Cânones das Igrejas Orientais, que poderia ajudar a realizar uma integração eficaz dos procedimentos do Código de Direito Canônico.
Nada impede que o Bispo diocesano, enquanto legislador na própria diocese, estabeleça normas orgânicas, claras e gerais sobre o modo de proceder na Curia diocesana no que diz respeito à formação dos provedimentos administrativos.
Enfim, mesmo reconhecendo a necessidade dos recursos e dos processos importantes no contexto da justiça administrativa, considero que o estudo do procedimento administrativo na perspectiva da produção do ato, mais do que na perspectiva da patologia ou da imputação, resulta bem mais eficaz e educativo, sob vários pontos de vista. O controle preventivo do uso do poder discricionário – como também o autocontrole por parte da autoridade – deve ser significativo no curso da instrução do procedimento com exigência do bom governo Pastoral.
A existência das normas e a sua observância exemplar pelos Pastores, favorece a prevenção em relação aos mesmos Pastores da grave acusação feita por Tertuliano aos magistrados imperiais: "Prevaricaris in leges" – Prevaricais contra as vossas próprias leis. Quando se observam as normas jurídicas, elas têm o condão de envolver a vida do corpo social em caminhos seguros, permanentes e adequados. São um modo eficaz de prevenir a improvisação e favorecem a tutela dos direitos subjetivos. E quando a atuoridade – quer seja civil quer seja eclesiástica – se submete às leis, a mesma autoridade se faz mais amável e torna a obediência atraente.
Londrina, 14 de julho de 2011.
Mons. Dr. José Aparecido Gonçalves de Almeida
Subsecretário do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos
(*)Palestra de partilha de tese de doutoramento proferida em LONDRINA - PR, no XXVI ENCONTRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE CANONISTAS e XXVIII ENCONTRO DOS SERVIDORES DOS TRIBUNAIS ECLESIÁSTICOS DO BRASIL.
sábado, 16 de julho de 2011
DIREITO CANÔNICO - PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
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